A luz e a sombra vivida pelo adolescente na relação familiar e cultural. Uma análise do conto “a alma e o coração da baleia”. (Alaska)
A adolescência é um período de intensas e importantes transformações. Há um aumento dos riscos que está associado à intensidade das mudanças que se produzem durante esse período nos planos físico, sexual, emocional, cognitivo e social, tendendo a cessar com a chegada da idade adulta. Entretanto, deve-se considerar que a maioria dos problemas de comportamento identificados na adolescência decorre de uma exploração transitória, e não da adoção de padrões de condutas definitivos, sendo que a maioria dos problemas tem grande chance de atenuar-se com a passagem para a vida adulta.
Contudo, há os indivíduos que enfrentam problemas mais sérios na adolescência, e afundam-se nessas dificuldades e continuam vivendo sérios problemas ao longo da vida.
A intensidade e o agravamento progressivo pode significar um indicador de que o risco persistirá comprometendo o desenvolvimento. Desse modo, a transição adolescente é um período no qual a probabilidade de enfrentar problemas psicossociais aumenta para todos os jovens.
Utilizando a análise desse conto sombrio, “A alma e o coração da baleia”, e relacionando à adolescência, tento aprofundar e compreender esse processo de transição considerando que os contos de fadas podem ser utilizados como instrumentos simbólicos na prática clínica e para o entendimento das relações afetivas estabelecidas nesse período que é marcado por conflitos e proeminente busca de autoafirmação.
Este conto traz aspectos relevantes como: onipotência, impulsividade, imaturidade, inconstância e inconsciência.
Utilizo nessa análise o corvo como símbolo do adolescente e como a representação de uma figura transgressora, sendo descrito como muito bobo e convencido, demonstrando um comportamento onipotente e inconsequente. Desse modo, seu processo de transformação ocorre de maneira instintiva, involuntária e incompleta.
Por se tratar de um conto pouco difundido, reproduzo a seguir o conto “A alma & o coração da baleia”. (Alaska)
Por ter voado para muito longe o corvo foi parar em alto mar. Exausto de tanto bater as asas, procurou um lugar para descansar, mas não avistou nenhum pedaço de terra no meio de toda aquela água. Já sem forças para continuar voando, avistou uma enorme baleia que subiu à tona, e o corvo sem pensar, mergulhou naquela bocarra aberta. Foi parar na barriga da baleia e se deparou com uma casa muito limpa e confortável, bem iluminada e quentinha.
Uma jovem estava sentada na cama, segurando uma lanterna. Ela, então diz ao corvo para que ele fique à vontade, mas para que nunca toque na lanterna. O corvo feliz da vida promete que jamais faria tal coisa. O corvo observa que a moça parece inquieta. A todo instante se levanta, vai até a porta e volta a sentar na cama. O corvo pergunta se há algum problema, a moça responde que não, dizendo: “é só a vida… A vida é o ar que se respira.”.
O corvo está morrendo de curiosidade. Assim, quando a jovem vai até a porta, resolve tocar na lanterna para ver o que acontece. E aconteceu que a moça caiu estatelada na sua frente e a luz se apagou. O mal estava feito. A casa ficou fria e escura, o cheiro de gordura e sangue deixou o corvo enjoado. Inutilmente ele procurou a porta para sair dali e, cada vez mais nervosa, começou a se coçar de tal modo que arrancou todas as suas penas. Tinha certeza que iria morrer congelado.
A moça era a alma da baleia, que a impelia para a porta toda a vez que enchia os pulmões de ar. Seu coração era a lanterna acesa. Quando o corvo tocou, a chama se extinguiu. Agora a baleia estava morta e guardava em seu interior o pássaro intrometido.
Depois de muito chorar e pensar, o corvo finalmente conseguiu sair das escuras entranhas e sentou no dorso daquele imenso defunto. Ensebado, sujo, depenado, era uma tristíssima figura.
A baleia morta ficou flutuando no mar até que desabou uma tempestade e as ondas a empurraram para a praia. Quando a chuva parou, alguns pescadores saíram para trabalhar e viram a baleia. O corvo também os viu e se transformou num homenzinho feio e estropiado. Então, em vez de confessar que se intrometera onde não fora chamado e destruíra algo belo que não conseguira compreender, pôs-se a gritar que havia matado a baleia. E assim se tornou um grande homem entre os seus pares. (PHILIP, 2000 p. 34).
INTERPRETAÇÃO SIMBÓLICA DO CONTO E SUA RELAÇÃO COM O PERÍODO DA ADOLESCÊNCIA.
O adolescente, assim como o corvo, na sua imaturidade, impulsividade e inconsequência, pode “voar longe demais”, correndo o risco de comprometer sua vida física e mental, assim como a sua estrutura familiar. Mas, se por acaso tiver a “sorte” de sair ileso dessas circunstâncias perigosas que oferecem grandes riscos, poderá até ser considerado um herói e passar a ser valorizado pelo seu grupo de iguais. Entretanto, não podemos afirmar que ao final desse conto o corvo tornou-se um herói e conquistou um verdadeiro amadurecimento e desenvolvimento pessoal.
O contato e a responsabilidade pela morte da baleia trazem ao corvo a aproximação com a força do inconsciente. Assim sendo, ele poderia ser devorado e aniquilado pela sombra ou então sair dessa experiência transformado. Segundo Ramos et al. (2005), o estudo do simbolismo dos animais mostra que eles se manifestam na psique humana sob a forma de forças variadas e significativas. O símbolo da baleia nos ensina a escutar a nossa voz interior e a termos sabedoria para sentir o pulsar do universo. O corvo não respeitando a orientação da mulher com a lanterna que vive dentro da baleia (representação da sua alma) arrisca ser aniquilado. Todavia, ele consegue se livrar de sua total destruição, mas sua transformação não é plena convertendo-se numa figura bizarra.
Observa-se que a transformação do corvo não ocorreu por uma busca consciente, nem em função de uma luta por uma causa, mas por acaso, fruto de um ato inconsequente, irresponsável e transgressor, que causou a destruição da baleia. Mas por estar inserido em uma sociedade em que a carne e outros produtos desse animal são vitais para a sobrevivência daquele povo, o corvo acabou sendo admirado e respeitado como um grande homem, que conseguiu sozinho matar uma baleia.
Levando–se em consideração o que foi mencionado no final do conto, pode-se observar que o corvo é muito mais a representação de um enganador e impostor, uma antítese do herói, pois se aproveitou de uma situação, mentindo em relação a sua motivação e ação. Logo, fazendo parecer que o mal causado a baleia, significava algo bom e positivo.
Verifica-se portanto, que o adolescente tem acesso a certas liberdades e responsabilidades do mundo adulto, o que pode influenciar a probabilidade de eles cometerem atos contraventores. Dessa forma, por um lado, o jovem sente-se atraído por novas possibilidades: ele dispõe de maior liberdade e uma diminuição na supervisão. De outro lado o ambiente exterior torna-se mais exigente com ele ampliando as expectativas a seu respeito. Nesse contexto, de menor supervisão, maiores expectativas e desejo de emancipação pode ocorrer um aumento na forma de comportar-se de maneira ilegítima surgindo à tentação de trapacear e mentir para atingir os seus objetivos, assim como fez o corvo em nosso conto.
Adriana Politi | Psicóloga Clínica especialista em psicoterapia Junguiana e saúde mental – Membro Candidata do IJUSP, filiada a AJB e IAAP
Email: spauloncipoliti@uol.com.br
Ilustração: Kaoruko