Passarelas, vacinas e escolhas | Mamis na Madrugada

Dizem que havia, na cidade de Imunolândia, um cruzamento de carros muito movimentado e perigoso. Tentou-se de tudo: sinalização, campanha de conscientização aos motoristas, melhores freios, multas. Nada adiantou. Muitos atropelamentos e mortes ainda aconteciam. Até que a engenheira Jenner teve a ideia de construir uma passarela. Os atropelamentos naquele cruzamento foram então de centenas por ano a quase zero.

Muitos anos se passaram e ninguém mais se lembrava de que aquele cruzamento fora um dia perigoso. Foi quando começou a surgir comentários de que substâncias na tinta da passarela eram tóxicas e que em lugares altos era mais fácil ser atingido por um raio. Um médico até espalhou que subir as escadas da passarela poderia causar infartos em crianças. Mesmo que muitos outros médicos terem provado logo depois que esta afirmação não era verdadeira, o dano estava feito. Alguns pais, com todas as boas intenções, se recusavam a usar a passarela e arriscavam atravessar o cruzamento com seus filhos. E agora, na cidade de Imunolândia, atropelamentos começaram a surgir onde antes não haviam mais.

Vacinas são nossas “passarelas”. Salvaram e ainda salvam milhões de vidas no mundo todo. E mesmo sendo a intervenção médica de maior sucesso, elas não recebem seu devido crédito pela sociedade. E é claro que, como tudo que existe nesta vida, vacinas não são perfeitas. Elas apenas são suas melhores escolhas. Por exemplo, você, jovem adulto, pode escolher vacinar-se contra a Febre Amarela e arriscar uma chance menor que 0,004% de ter uma reação adversa grave à vacina [1,2]. Ou… pode dizer não para ela e caso pegue Febre Amarela, suas chances de morrer poderão ser as mesmas que tirar cara em um jogo de moeda [3]. Explicando estas chances em uma escala maior. Para cada 100 mil adultos vacinados contra Febre Amarela, espera-se que menos de 4 deles desenvolva uma grave reação indesejada à vacina (um número maior terá reações mais brandas). Por outro lado, se 100 mil pessoas chegarem ao hospital com sintomas da doença, entre 20 a 50 mil delas irão falecer. O que você escolhe fazer?

Mais importante, o que você escolhe fazer pelas pessoinhas que não podem decidir? Você pode vacinar seu filho contra o tétano de graça num posto de saúde e, assim, protegê-lo de uma doença terrível que provoca rigidez muscular e espasmos corporais extremamente dolorosos. Ou, pode fazer como o casal americano que decidiu não vacinar seu filho de 6 anos e teve que assisti-lo sofrer por 2 meses em um hospital tendo que pagar quase 4 milhões de reais por isso [4].

Acredito que pais querem sempre o melhor para seus filhos. Graças a estudos científicos e epidemiológicos hoje todos sabem que é bom passar protetor solar nas crianças, não fumar perto deles, não beber durante a gravidez e usar a cadeirinha no carro. Estranhamente, isso não é aplicado de forma universal para as vacinas. Logo elas que já salvaram muito mais vidas do que todas as mortes causadas por tumores de pele, de pulmão, álcool na gravidez e acidentes de carro combinadas.

Enquanto isso, cientistas no Brasil e no mundo seguem tentando criar novas vacinas ou melhorar as que já existem. Pesquisas sérias e inovadoras em vacinas estão sendo desenvolvidas no Instituto Butantan e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos de Bio-Manguinhos, além de dezenas de laboratórios nas universidades brasileiras.

Bio-Manguinhos mostrou recentemente que doses fracionadas da vacina de Febre Amarela podem, sim, serem usadas em épocas de epidemia [5]. Um outro bom exemplo é a vacina da Dengue do Instituto Butantan que já está nas fases finais de testes e será em breve disponibilizada à população que hoje sofre com surtos em várias cidades [6]. Outras vacinas contra Zika [7] ou contra o Ebola na África estão também em desenvolvimento ou em fase de testes. Todas estas “passarelas” irão evitar muitas mortes e estão sendo lentamente erguidas com o esforço contínuo de excelentes cientistas. Precisamos que todos lutem por este bem maior que são as vacinas.

 

Helder Nakaya|  Pofessor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e colunista do blog da SBI

 

Referências:

1. de Menezes Martins R, Fernandes Leal Mda L, Homma A. Serious adverse events associated with yellow fever vaccine. Hum Vaccin Immunother. 2015;11(9):2183-7.

2. Lindsey NP, Rabe IB, Miller ER, Fischer M, Staples JE. Adverse event reports following yellow fever vaccination, 2007-13. J Travel Med. 2016 Jul 4;23(5).

3. Jentes ES, Poumerol G, Gershman MD, Hill DR, Lemarchand J, Lewis RF, Staples JE, Tomori O, Wilder-Smith A, Monath TP; Informal WHO Working Group on Geographic Risk for Yellow Fever. The revised global yellow fever risk map and recommendations for vaccination, 2010: consensus of the Informal WHO Working Group on Geographic Risk for Yellow Fever. Lancet Infect Dis. 2011 Aug;11(8):622-32.

4. Notícia de jornal: https://www.theguardian.com/us-news/2019/mar/09/cdc-treatment-cost-tetanus-unvaccinated-oregon-boy

5. de Menezes Martins R, Maia MLS, de Lima SMB, de Noronha TG, Xavier JR, Camacho LAB, de Albuquerque EM, Farias RHG, da Matta de Castro T, Homma A; Collaborative Group for Studies on Duration of Immunity from Yellow Fever Vaccine. Duration of post-vaccination immunity to yellow fever in volunteers eight years after a dose-response study. Vaccine. 2018 Jun 27;36(28):4112-4117.

6. Precioso AR, Palacios R, Thomé B, Mondini G, Braga P, Kalil J. Clinical evaluation strategies for a live attenuated tetravalent dengue vaccine. Vaccine. 2015 Dec 10;33(50):7121-5.

7. Poland GA, Kennedy RB, Ovsyannikova IG, Palacios R, Ho PL, Kalil J. Development of vaccines against Zika virus. Lancet Infect Dis. 2018 Jul;18(7):e211-e219.

8. Huttner A, Agnandji ST, Combescure C, Fernandes JF, Bache EB, Kabwende L, Ndungu FM, Brosnahan J, Monath TP, Lemaître B, Grillet S, Botto M, Engler O, Portmann J, Siegrist D, Bejon P, Silvera P, Kremsner P, Siegrist CA; VEBCON; VSV-EBOVAC; VSV-EBOPLUS Consortia. Determinants of antibody persistence across doses and continents after single-dose rVSV-ZEBOV vaccination for Ebola virus disease: an observational cohort study. Lancet Infect Dis. 2018 Jul;18(7):738-748

 

Compartilhe